5 de abril de 2008

A tristeza de ser o Tonin A.

1995
Trim! Trim!
Tonin Álvares abriu os olhos, mas não sem antes abrir um largo sorriso. Eram 06:30 e era seu primeiro dia na escola “dos grandes” ― leia-se primeira série. Ele estava radiante. Após se arrumar e comer, recebeu o carinho dos pais na saída para o que ele considerava o maior dia da sua vida. Embora eles não conversassem, tinham a mesma preocupação em mente: o que as outras crianças pensariam de seu filho. Tonin A., como o chamavam para diferenciá-lo de seu pai, Sr. Tonin Resende, não era como os outros garotos. Eles não sabiam dizer bem o que se passava, ele se resignava com reclamações e castigos, não parecia importar-se com repressões e o que mais os preocupava, não ligava para o que ninguém falava dele.
Mas seu primeiro dia na escola passou bem, e vários outros juntos. Ou ao menos era o que pensavam os seus pais, até que receberam uma ligação da escola na segunda semana. Ao averiguar a situação:
― Desculpe, senhores, mas a escola, por motivos próprios, acha melhor a transferência do aluno para outra instituição.
― Mas por quê? Qual o problema?
― Entendam, seu filho parece não estar adaptando-se bem ao ambiente escolar. Nada de mais aconteceu, só estamos visando ao melhor interesse do seu filho.
(...)

― Doutor, diga: o que você descobriu?
― Veja bem, fiz boa parte dos testes possíveis, senhora, mas parece que seu filho está muito bem. Todos os níveis estão bons. Não tenho escolha a não ser afirmar que, se ele tem algo, é psicossomático e portanto deveria consultar um psiquiatra.
Tinha sido muito difícil para sua mãe levá-lo ao médico. Não só por ter de admitir que algo realmente se passava com seu filho, mas estar sem idéia alguma dos motivos disso. Nada aterroriza mais o ser humano que o desconhecido.
Quem não via problema nenhum nisso era Tonin. A própria idéia de ir ao médico o excitara, e ele estava muito alegre com a situação. Também estava se divertindo muito na nova escola e não entendia por que seus pais preocupavam-se.
(...)

1999
― Boa noite. ― disse o apresentador do jornal.
Tonin notou, com certa curiosidade, que seu pai não cumprimentou a televisão esta noite. Teve uma súbita vontade de rir, mas controlou esse sentimento. Ele estava em uma fase muito observadora, e já percebera que para ver o que havia de mais sincero nas pessoas, era preciso fazê-las esquecer da sua presença, por isso fingia-se invisível. Seu pai definitivamente estava perturbado com algo. Tonin continuou dando olhadelas furtivas para o pai vez em quando, alternando sua atenção entre seus estudos de antropólogo e seu dever de casa.
Havia já quatro anos que estudava em casa, pelo computador, e habituara-se a fazer seus deveres à noite, antes de dormir. Sua mãe temia que a falta de contato com professores fosse afetar o desempenho escolar de seu filho, mas sempre que o questionava, ele dizia estar muito contente com essa opção, e assim, ela se tranqüilizava, ainda que por pouco tempo.
Mas o garoto era esquisito. Seu pai sabia e sua mãe sabia. Eles viviam na eterna preocupação de não saber bem o que havia com ele, mas percebiam seus modos diferentes.
(...)

2004
Isabel batia à porta. Ao primeiro toque, Tonin sentiu um enorme júbilo; sua namorada estava chegando e seus pais tinham viajado. Ele tinha grandes expectativas para o dia. Mas a expressão da garota não era exatamente a que ele imaginava quando abriu a porta; ela estava chorando. Correu para dentro da casa e se jogou no sofá. Tonin A. sabia, é claro, que algo de ruim devia ter acontecido, mas isso não o aborreceu. Pelo contrário, o acontecimento o trouxe muita alegria. “Só preciso guardar isso pra mim”, pensou ele. E foi ter com a garota.
― How you doing? ― disse, aparentemente achando muita graça nisso.
A menina subitamente parou de chorar e levantou-se. Ela trazia uma expressão muito séria, que qualquer humano e alguns outros hominídeos poderiam reconhecer como raiva.
― Você é um babaca completo. ― Suas palavras soavam como tiros disparados em Tonin. ― Como você pode estar assim, alegre, fazendo graça quando eu entro aqui desesperada? Seu monstro!
Ele havia entregado o jogo muito facilmente. Por dentro, se recriminava duramente, e isso somado às duras palavras de sua garota, causava-lhe convulsões... de felicidade. E o fato de estar feliz a respeito disso, contrariando tudo o que ele conhecia sobre outras pessoas, principalmente as da televisão, poderia até ter o espantado no passado, e o deixado mais feliz ainda, mas hoje em dia ele já tinha aceitado isso e não pensava mais a respeito. Só sabia é que ela estava indo embora e nunca mais voltaria. Seu estômago deu uma reviravolta de pura satisfação.
(...)

2006
Por influência do pai, arranjara um bom emprego em uma fábrica de pregos e o salário ficava para si, uma vez que ainda morava na casa dos pais. Naquela manhã, recebeu uma ligação no telefone recém-instalado do seu cubículo cheio de câmeras para vigiar os trabalhadores da linha de produção.
― Filho, corra já para o hospital Hipócrates, sua mãe teve um acidente!
Tonin foi direto para lá. Encontrou a mãe embaixo de uma infinidade de fios, que a ligavam a inúmeras máquinas. Ela tinha cortado os pulsos e seu estado era grave. O rapaz, por estar em estado de choque, correu para dentro da sala, contrariando os médicos. A mulher, ao ser abraçada pelo filho, foi trazida de volta à consciência. Ela teve um instante de calma e paz, e quando tinha acreditado que tudo daria certo ― por alguma razão a música Imagine tinha vindo à sua mente ―, Tonin se afastou dela e ela olhou no fundo de seus olhos: ela nunca tinha visto uma expressão tão contente na vida. O choque foi grande demais para a mulher, que teve um infarto e morreu.
(...)

Tonin Resende nunca conseguiria perdoar o filho. Em assuntos assim emocionais, nunca ele pensaria do mesmo modo que pensava sobre o filho nas outras questões. Dessa vez, ele não daria um desconto ao rapaz. O rapaz não tinha problemas. Ele era mesmo um crápula. Tonin A. só esteve em casa uma vez após o incidente da mãe. Juntou algumas coisas, todo seu dinheiro e foi chutado para a rua pelo pai descontrolado. A situação poderia parecer ruim para ele, mas ela o levava a um estado de quase nirvana. O rapaz estava indescritivelmente bem.
Alguns meses após tais acontecimentos ― mas não pela expulsão de casa ou pela tentativa de suicídio da mãe, e sim por um filme ―, ele foi levado a ponderar sobre seus modos em relação à vida. Oh, a vida! A doce volúpia de viver. Como ele gostava de tudo isso. E foi por gostar tanto de tudo isso, que resolveu aceitar o conselho que já era senso-comum entre seus conhecidos. Foi a um psicólogo.
Fosse esse doutor competente, teria compreendido a magnitude do indivíduo que aconselhava e estudava, poderia ter escrito um artigo para revistas científicas e tornar-se famoso.
― Tanto o que é bom quanto o que é ruim te deixa feliz. Você só sabe sentir coisas boas. ― Porém, a única conquista do psicólogo foi ter dito essa frase pela primeira vez na história sem estar enganado ou usando-a como instrumento de retórica.
(...)

2026
Ao sair do elevador, sentiu o cheiro bom de comida, que logo o animou. Ao entrar em casa, porém, descobriu que a refeição era em outro apartamento. Encontrou a mulher deitada na cama, dormindo; resolveu não acordá-la. Raciocinando que o dinheiro do almoço era ele quem providenciava, vasculhou sua bolsa para almoçar fora, onde encontrou remédios para depressão. Naturalmente, Tonin A. não entendia por que as pessoas tomavam remédios contra a tristeza, mas sabia que precisava conversar com ela.
Quando voltou do almoço, encontrou-a de pé, muito agitada.
― Você andou vasculhando a minha bolsa? ― Ela tentava parecer irritada, mas estava na defensiva, pois sabia que o marido ia perguntar sobre os remédios.
― Querida, o que está acontecendo? Você está com depressão? ― Tonin queria ser compreensivo, estar com a mulher o deixava muito feliz e satisfeito. ― Por que você não me contou antes?
― Você não sabe... como é... ― De repente, estava ofegante. Percebia que chegara a hora em que ela poderia dizer tudo o que a incomodava há anos. ― Sua vida parece tão perfeita, tudo está sempre ótimo! A pressão que você põe nos outros! Minha vida nunca é boa o suficiente... ― Ela tentava conter o choro.
― Eu sinto muito, mas eu não tenho culpa de nada disso. Não escolhi ser abençoado de tal modo! ― O homem há muito tempo tinha aceitado sua condição e se tornara até muito orgulhoso dela. ― Nunca quis que isso lhe causasse algum sentimento ruim. ― Ele sorria muito e isso a deixava enojada, depois de tanto tempo convivendo de tal modo.
― Eu sei. Também eu não tenho culpa, mas saiba que os remédios me fazem bem, e assim estou bem. Não quero nenhum atrito entre a gente. ― A esposa, com toda a frieza calculista característica das mulheres, estava mentindo. Ela sabia que não poderia viver daquele jeito, mas não agüentaria uma discussão agora, vendo Tonin rir-se, muito alegre com tudo aquilo. Não, ela tomara sua decisão. Apaziguou a briga e o resto do dia correu tranqüilo. Dormiram juntos naquela noite.
Quando ele acordou, no meio da noite, por pesadelos terríveis ― embora muito prazerosos ―, estava sozinho na cama. Colado no espelho, uma pequena carta, podia-se até dizer que era só um aviso. “Desculpe-me Tonin, querido, mas é impossível viver assim, com alguém sempre alegre, independente da situação. A vida é feita de subidas e descidas, e sendo a sua sempre lá em cima, não tinha escolha senão estar sempre embaixo.”
Tonin A. leu aquilo extasiado. Por mais que soubesse que amava a mulher e não queria que ela fosse embora, não podia conter aquela felicidade transbordante em si. Naquele momento ele entendeu a sua vida. Realmente entendeu a situação dos que passaram por ele ― e todos passaram, ninguém restou. Sua alegria não contagiava os outros, ela os deixava miseráveis. Por mais que isso o trouxesse júbilo, ele decidiu que não ia deixar ninguém mais ficar mal por causa dele. Correu para a sacada, e com um profundo sentimento de satisfação, pulou. A queda lhe pareceu sublime. E também o encontro ao chão. Quem o conheceu sabe que, se estivesse vivo, ele teria dito que foi o momento mais feliz de sua feliz vida.

6 comentários:

Unknown disse...

você postou!

JV disse...

faço minhas as palavras da moça aí em cima

Anônimo disse...

Bom.

João Gabriel disse...

Por medo de não ter ficado explícito, explico: existe um trocadilho no título, onde se pode ler "serotonina", que dizem que é o que causa felicidade, por isso o nome Tonin A.
(Na verdade, serotonina é uma molécula que ajuda na transmissão dos impulsos dos neurônios. Pessoas em depressão tendem a ter pouca serotonina.)
Enfim, muito obrigado.

Anônimo disse...

Gostei da crônica :)
E foi mto bem sacada a da serotonina.

:*

Unknown disse...

Nossa, realmente muito bom! Pode-se tirar varias reflexoes sobre o texto e ainda fazer uma comparaçao com "Admiravel mundo novo"; sera que seria realmente bom estarmos sempre feizes e nao saber o que é tristeza e dor? Sera que a vida nao perderia seu sentido e graça? Seria bom nao sentirmos dor, mas acho que a maior felicidade que podemos sentir é aquela causada pela superaçao de uma tristeza. Gostei muito tambem da "jogada" da mulher nao aguentar a felicidade do marido. Essa é relamente uma condiçao humana; nao aguentamos ver outras pessoas felizes se nao estamos deste modo, algo totalmente egoista e frio. E como assim "com toda a frieza calculista característica das mulheres" ? Hhehehe...
Bem, parabens ! Gostei muito.
Beijao.