17 de dezembro de 2008

Nós, a poça d'água

"Imagine uma poça d'água acordando um dia e pensando, "Que mundo interessante este em que me encontro, um buraco interessante, ele me serve direitinho, não? Na verdade, ele me serve perfeitamente bem, só pode ter sido feito para me ter dentro dele!". E essa é uma idéia tão poderosa que, enquanto o sol nasce no céu e o ar se aquece e, gradualmente, a poça vai ficando menor e menor, ela ainda se agarra desesperadamente à noção de que tudo dará certo, porque o mundo foi criado para tê-la dentro dele; assim, o momento em que ela desaparece por completo a pega de surpresa.
Eu acho que isso é algo que nós devemos estar de olho". (Douglas Adams)


Eu espero que vocês vejam essa historinha divertida, criada pelo ótimo Douglas Adams (escritor da série Guia do Mochileiro das Galáxias), como um sério argumento. Um argumento contra a presunção humana, nosso antropocentrismo infundado. Não somos o centro do Universo, não somos uma criação divina, tudo bem. Mas vai mais longe: o que nós temos como certo pode estar longe da verdade, pois a mente humana é falha — e muito.

Uma maçã é gostosa? Talvez para nós, mas ela não é intrinsicamente gostosa. Nossa mente cria a percepção de que ela é gostosa porque ela pode nos ofecerer carboidratos e vitaminas. As flores nos parecem bonitas, mas não podemos dizer que isso é algo universal. Elas assim nos parecem porque a mente humana as considera bonitas. Talvez um jacaré as ignore por completo. Nossa mente foi desenvolvida pela seleção natural e criou mecanismos para que nós fizéssemos as coisas certas para a sobrevivência e procriação, e não que pudéssemos entender o mundo em sua inteireza. Nossa própria visão é apenas um trecho do espectro de freqüências da luz: certos animais vêem coisas que não aparecem aos nossos olhos. O mesmo se dá na audição.

Além disso, nos foi dado um senso de causalidade e finalidade. Os seres fazem certas coisas para atingir objetivos. Isso está na nossa percepção do mundo e está até na nossa linguagem: falamos sempre em termos de causalidade e finalidade, toda língua tem conjunções para isso. Até dizemos que as gorduras são hidrofóbicas (têm aversão a água). Ora, as gorduras não têm nada, pois não agem por vontade própria. Inventamos fábulas onde os objetos materias ganham vida e têm desejos. E inventamos deuses, à nossa imagem e semelhança. Eles têm raiva, têm inveja de que acreditemos em outros deuses, têm compaixão e listas de regras para nós obedecermos. Isso não soa um tanto... humano?

Por tudo isso, queremos que o mundo tenha sido criado com um objetivo, geralmente o de nós ter dentro dele. Assim como a poça d'água ignora a sua desimportância no universo, nós ignoramos a nossa. Além de achar que somos os reis da Terra, queremos achar que o Universo existe por alguma razão que pareça fazer sentido, quando talvez nem haja motivo; nós atribuímos motivos às coisas porque nossa mente foi moldada para isso, não porque essa é a lei do mundo. Nós só absorvemos o trechinho do mundo que nossos sentidos captam e nossa mente ajusta todos esses dados de um modo que foi favorável para os objetivos da nossa jornada evolutiva, não para que tivéssemos ciência e filosofia. Pense no big bang, pense na poça.