21 de abril de 2008

Chomsky e o poder

Vez em quando, nos acontece algo que muda tudo. Algo que realmente transforma o modo como vemos as coisas e o mundo. É essa a impressão que nos deixa o lingüista e ativista político Noam Chomsky. Por influência de alguns livros de divulgação científica que sempre citavam Chomsky e também por uma matéria da Superinteressante entrei em contato com este gênio.

Chomsky revolucionou seu ramo de estudo, a lingüística, com sua gramática ge(ne)rativa transformacional, que usa matemática para explicar as línguas, mas não é sobre o cientista que quero falar (até porque eu não entendo nada de lingüística mesmo). É sobre o Chomsky militante. Nascido nos EUA, estudou em uma escola progressista onde podia seguir seus interesses, bem diferente de nossas escolas com prazos e regras. Aos 10 anos, escreveu um ensaio sobre a Guerra Civil Espanhola; aos doze já se identificava com ideais anárquicos.

Ao longo de sua vida — ele tem hoje 79 anos — escreveu vários livros sobre as estruturas do poder americano, suas estratégias imorais para manter o poder, o perigo
do neoliberalismo, o modo como a mídia controla as pessoas e outras questões. A princípio, podem lhe parecer coisas enfadonhas, como a mim teriam parecido antes de lê-lo, mas garanto a vocês que não são. A leitura das idéias e ideais de Chomsky nos atinge como tapas na cara, a simplicidade com que ele mostra toda a tirania por trás dos atos dos poderosos chega a ser irritante. Qualquer um que não quer ser uma peça no jogo das corporações dominantes que buscam lucros acima das pessoas deveria ler Chomsky.


No livro “Para entender o poder”, uma coletânea de palestras dadas pelo ativista foram selecionadas para apresentar seus principais argumentos, cobrindo desde os movimentos pelos direitos humanos dos anos 60, das ditaduras patrocinadas pela CIA por todo o mundo, até a falsa democracia americana e a mídia manipuladora. O livro certamente nos mostra que aquela imagem que temos ao estudar a História, de que antigamente o mundo girava pela cobiça e pelo dinheiro, sem se import
ar com as pessoas, na realidade pouco mudou. O que mudou, quem sabe, é o modo como isso é escondido de nós.

Além do mais, não conheço ninguém que tenha o lido e isso é altamente frustrante, por não poder conversar com ninguém, então eu estou emprestando para quem quiser. Como disse uma crítica do The Nation, “Nunca o ter lido é flertar com a verdadeira ignorância”.



12 de abril de 2008

Science easy as a 3,14 (π)

Quem entende a seleção natural? A teoria da relatividade geral? A mecânica quântica? Bom, com certa variação entre cada uma, podemos dizer que boa parte das pessoas não entende tais coisas — inclusive você que diz que o homem veio do macaco.*

Isso certamente não é estranho, não são coisas óbvias, é preciso ler para entendê-las. O que é estranho é que as pessoas não parecem querer entender. Mas os limites do conhecimento humano não interessam o povo em geral? Dificilmente. A ciência traz periodicamente avanços incríveis pra sociedade — coisas que realmente mudam nossa vida —, como a criação das máquinas a vapor que levaram à Revolução Industrial. (Vale comentar que na Grécia Antiga, antes de Cristo, já havia sido criado uma máquina a vapor, mas na época ela era desnecessária porque eles tinham escravos e não recebeu muito crédito.)
Essas evoluções do saber são interessantes. Muito interessantes. Aí que me arrisco a deduzir: as pessoas não tentam entender porque existe uma grande sensação de que são coisas elevadas, complicadas demais para o cidadão comum. As pessoas desistem.

Agora, o que se pode dizer tranqüilamente é que as pessoas não precisavam desistir. E isso porque existe um segmento da literatura dedicado especialmente a isso: divulgar a ciência de modo simples e claro para o leitor que não é especialista. No meio acadêmico, chamam isso de “divulgação científica” — Ok, isso foi uma piada — e grandes cientistas de vários ramos de conhecimento vêm se dedicando à tarefa. Se você tem interesse por astronomia, surgimento do Universo e afins, você pode ler Stephen Hawking ou Carl Sagan. Se você se interessa pelo surgimento da vida e outras questões da biologia, você pode ler livros de Stephen J. Gould e Richard Dawkins. Se quer entender a mente humana, pode ler Steven Pinker. A lista continua.

Além de livros, existem revistas de divulgação científica, como a SciAm Brasil ou a Superinteressante (embora quanto a essa haja controvérsias). Existem documentários muito bons sobre vários assuntos científicos, como os feitos pela BBC. Ou seja, hoje em dia podemos entender a ciência e perceber seus avanços mesmo sem diplomas. E por que não faríamos isso? Quem sabe boa parte das nossas dúvidas filosóficas já estejam resolvidas. Quem sabe perguntas que nunca nos fizemos tenham respostas incríveis. É a impressão que eu tenho. Descubra.



*A história de que o homem veio do macaco é um erro que surgiu da má explicação da seleção natural. O fato é que a nossa espécie e os macacos atuais tiveram um parente em comum, em um passado relativamente recente. Inclusive, pesquisas no DNA revelam que os macacos atuais mudaram mais que nós, ou seja, esse parente antigo parecia-se mais conosco que com os outros símios. Uma bela rasteira nos nossos egos, hein?

5 de abril de 2008

A tristeza de ser o Tonin A.

1995
Trim! Trim!
Tonin Álvares abriu os olhos, mas não sem antes abrir um largo sorriso. Eram 06:30 e era seu primeiro dia na escola “dos grandes” ― leia-se primeira série. Ele estava radiante. Após se arrumar e comer, recebeu o carinho dos pais na saída para o que ele considerava o maior dia da sua vida. Embora eles não conversassem, tinham a mesma preocupação em mente: o que as outras crianças pensariam de seu filho. Tonin A., como o chamavam para diferenciá-lo de seu pai, Sr. Tonin Resende, não era como os outros garotos. Eles não sabiam dizer bem o que se passava, ele se resignava com reclamações e castigos, não parecia importar-se com repressões e o que mais os preocupava, não ligava para o que ninguém falava dele.
Mas seu primeiro dia na escola passou bem, e vários outros juntos. Ou ao menos era o que pensavam os seus pais, até que receberam uma ligação da escola na segunda semana. Ao averiguar a situação:
― Desculpe, senhores, mas a escola, por motivos próprios, acha melhor a transferência do aluno para outra instituição.
― Mas por quê? Qual o problema?
― Entendam, seu filho parece não estar adaptando-se bem ao ambiente escolar. Nada de mais aconteceu, só estamos visando ao melhor interesse do seu filho.
(...)

― Doutor, diga: o que você descobriu?
― Veja bem, fiz boa parte dos testes possíveis, senhora, mas parece que seu filho está muito bem. Todos os níveis estão bons. Não tenho escolha a não ser afirmar que, se ele tem algo, é psicossomático e portanto deveria consultar um psiquiatra.
Tinha sido muito difícil para sua mãe levá-lo ao médico. Não só por ter de admitir que algo realmente se passava com seu filho, mas estar sem idéia alguma dos motivos disso. Nada aterroriza mais o ser humano que o desconhecido.
Quem não via problema nenhum nisso era Tonin. A própria idéia de ir ao médico o excitara, e ele estava muito alegre com a situação. Também estava se divertindo muito na nova escola e não entendia por que seus pais preocupavam-se.
(...)

1999
― Boa noite. ― disse o apresentador do jornal.
Tonin notou, com certa curiosidade, que seu pai não cumprimentou a televisão esta noite. Teve uma súbita vontade de rir, mas controlou esse sentimento. Ele estava em uma fase muito observadora, e já percebera que para ver o que havia de mais sincero nas pessoas, era preciso fazê-las esquecer da sua presença, por isso fingia-se invisível. Seu pai definitivamente estava perturbado com algo. Tonin continuou dando olhadelas furtivas para o pai vez em quando, alternando sua atenção entre seus estudos de antropólogo e seu dever de casa.
Havia já quatro anos que estudava em casa, pelo computador, e habituara-se a fazer seus deveres à noite, antes de dormir. Sua mãe temia que a falta de contato com professores fosse afetar o desempenho escolar de seu filho, mas sempre que o questionava, ele dizia estar muito contente com essa opção, e assim, ela se tranqüilizava, ainda que por pouco tempo.
Mas o garoto era esquisito. Seu pai sabia e sua mãe sabia. Eles viviam na eterna preocupação de não saber bem o que havia com ele, mas percebiam seus modos diferentes.
(...)

2004
Isabel batia à porta. Ao primeiro toque, Tonin sentiu um enorme júbilo; sua namorada estava chegando e seus pais tinham viajado. Ele tinha grandes expectativas para o dia. Mas a expressão da garota não era exatamente a que ele imaginava quando abriu a porta; ela estava chorando. Correu para dentro da casa e se jogou no sofá. Tonin A. sabia, é claro, que algo de ruim devia ter acontecido, mas isso não o aborreceu. Pelo contrário, o acontecimento o trouxe muita alegria. “Só preciso guardar isso pra mim”, pensou ele. E foi ter com a garota.
― How you doing? ― disse, aparentemente achando muita graça nisso.
A menina subitamente parou de chorar e levantou-se. Ela trazia uma expressão muito séria, que qualquer humano e alguns outros hominídeos poderiam reconhecer como raiva.
― Você é um babaca completo. ― Suas palavras soavam como tiros disparados em Tonin. ― Como você pode estar assim, alegre, fazendo graça quando eu entro aqui desesperada? Seu monstro!
Ele havia entregado o jogo muito facilmente. Por dentro, se recriminava duramente, e isso somado às duras palavras de sua garota, causava-lhe convulsões... de felicidade. E o fato de estar feliz a respeito disso, contrariando tudo o que ele conhecia sobre outras pessoas, principalmente as da televisão, poderia até ter o espantado no passado, e o deixado mais feliz ainda, mas hoje em dia ele já tinha aceitado isso e não pensava mais a respeito. Só sabia é que ela estava indo embora e nunca mais voltaria. Seu estômago deu uma reviravolta de pura satisfação.
(...)

2006
Por influência do pai, arranjara um bom emprego em uma fábrica de pregos e o salário ficava para si, uma vez que ainda morava na casa dos pais. Naquela manhã, recebeu uma ligação no telefone recém-instalado do seu cubículo cheio de câmeras para vigiar os trabalhadores da linha de produção.
― Filho, corra já para o hospital Hipócrates, sua mãe teve um acidente!
Tonin foi direto para lá. Encontrou a mãe embaixo de uma infinidade de fios, que a ligavam a inúmeras máquinas. Ela tinha cortado os pulsos e seu estado era grave. O rapaz, por estar em estado de choque, correu para dentro da sala, contrariando os médicos. A mulher, ao ser abraçada pelo filho, foi trazida de volta à consciência. Ela teve um instante de calma e paz, e quando tinha acreditado que tudo daria certo ― por alguma razão a música Imagine tinha vindo à sua mente ―, Tonin se afastou dela e ela olhou no fundo de seus olhos: ela nunca tinha visto uma expressão tão contente na vida. O choque foi grande demais para a mulher, que teve um infarto e morreu.
(...)

Tonin Resende nunca conseguiria perdoar o filho. Em assuntos assim emocionais, nunca ele pensaria do mesmo modo que pensava sobre o filho nas outras questões. Dessa vez, ele não daria um desconto ao rapaz. O rapaz não tinha problemas. Ele era mesmo um crápula. Tonin A. só esteve em casa uma vez após o incidente da mãe. Juntou algumas coisas, todo seu dinheiro e foi chutado para a rua pelo pai descontrolado. A situação poderia parecer ruim para ele, mas ela o levava a um estado de quase nirvana. O rapaz estava indescritivelmente bem.
Alguns meses após tais acontecimentos ― mas não pela expulsão de casa ou pela tentativa de suicídio da mãe, e sim por um filme ―, ele foi levado a ponderar sobre seus modos em relação à vida. Oh, a vida! A doce volúpia de viver. Como ele gostava de tudo isso. E foi por gostar tanto de tudo isso, que resolveu aceitar o conselho que já era senso-comum entre seus conhecidos. Foi a um psicólogo.
Fosse esse doutor competente, teria compreendido a magnitude do indivíduo que aconselhava e estudava, poderia ter escrito um artigo para revistas científicas e tornar-se famoso.
― Tanto o que é bom quanto o que é ruim te deixa feliz. Você só sabe sentir coisas boas. ― Porém, a única conquista do psicólogo foi ter dito essa frase pela primeira vez na história sem estar enganado ou usando-a como instrumento de retórica.
(...)

2026
Ao sair do elevador, sentiu o cheiro bom de comida, que logo o animou. Ao entrar em casa, porém, descobriu que a refeição era em outro apartamento. Encontrou a mulher deitada na cama, dormindo; resolveu não acordá-la. Raciocinando que o dinheiro do almoço era ele quem providenciava, vasculhou sua bolsa para almoçar fora, onde encontrou remédios para depressão. Naturalmente, Tonin A. não entendia por que as pessoas tomavam remédios contra a tristeza, mas sabia que precisava conversar com ela.
Quando voltou do almoço, encontrou-a de pé, muito agitada.
― Você andou vasculhando a minha bolsa? ― Ela tentava parecer irritada, mas estava na defensiva, pois sabia que o marido ia perguntar sobre os remédios.
― Querida, o que está acontecendo? Você está com depressão? ― Tonin queria ser compreensivo, estar com a mulher o deixava muito feliz e satisfeito. ― Por que você não me contou antes?
― Você não sabe... como é... ― De repente, estava ofegante. Percebia que chegara a hora em que ela poderia dizer tudo o que a incomodava há anos. ― Sua vida parece tão perfeita, tudo está sempre ótimo! A pressão que você põe nos outros! Minha vida nunca é boa o suficiente... ― Ela tentava conter o choro.
― Eu sinto muito, mas eu não tenho culpa de nada disso. Não escolhi ser abençoado de tal modo! ― O homem há muito tempo tinha aceitado sua condição e se tornara até muito orgulhoso dela. ― Nunca quis que isso lhe causasse algum sentimento ruim. ― Ele sorria muito e isso a deixava enojada, depois de tanto tempo convivendo de tal modo.
― Eu sei. Também eu não tenho culpa, mas saiba que os remédios me fazem bem, e assim estou bem. Não quero nenhum atrito entre a gente. ― A esposa, com toda a frieza calculista característica das mulheres, estava mentindo. Ela sabia que não poderia viver daquele jeito, mas não agüentaria uma discussão agora, vendo Tonin rir-se, muito alegre com tudo aquilo. Não, ela tomara sua decisão. Apaziguou a briga e o resto do dia correu tranqüilo. Dormiram juntos naquela noite.
Quando ele acordou, no meio da noite, por pesadelos terríveis ― embora muito prazerosos ―, estava sozinho na cama. Colado no espelho, uma pequena carta, podia-se até dizer que era só um aviso. “Desculpe-me Tonin, querido, mas é impossível viver assim, com alguém sempre alegre, independente da situação. A vida é feita de subidas e descidas, e sendo a sua sempre lá em cima, não tinha escolha senão estar sempre embaixo.”
Tonin A. leu aquilo extasiado. Por mais que soubesse que amava a mulher e não queria que ela fosse embora, não podia conter aquela felicidade transbordante em si. Naquele momento ele entendeu a sua vida. Realmente entendeu a situação dos que passaram por ele ― e todos passaram, ninguém restou. Sua alegria não contagiava os outros, ela os deixava miseráveis. Por mais que isso o trouxesse júbilo, ele decidiu que não ia deixar ninguém mais ficar mal por causa dele. Correu para a sacada, e com um profundo sentimento de satisfação, pulou. A queda lhe pareceu sublime. E também o encontro ao chão. Quem o conheceu sabe que, se estivesse vivo, ele teria dito que foi o momento mais feliz de sua feliz vida.