23 de maio de 2008

Quando a linha tênue some

Em tempos de notícias(¹)(²) sempre muito de acordo com a imoralidade e maldade das FARC, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, comecei a pensar sobre as linhas entre o certo e o errado na luta por ideais. Explico:

As FARC são grupos que surgiram nos anos 60 e lutavam para instaurar um governo socialista na Colômbia. Resumindo a história para o que me interessa aqui, elas começaram a ficar sem dinheiro para lutar e apelaram para seqüestros e associação com traficantes. Acho que dificilmente alguém vai defender tais táticas como válidas e positivas — embora eu tenha lá minhas dúvidas sobre a validade das informações que a gente recebe; afinal, o pessoal da mídia não é muito fã de movimentos de extrema esquerda. Acontece que seqüestrar civis e lucrar com a venda de cocaína não é legal, isso nos parece óbvio. O ponto de vista deles é de que a sociedade colombiana tinha sérios problemas de desigualdade social, só uns poucos tinham muito dinheiro enquanto a maioria vivia em condições de pobreza e a culpa era do governo e do sistema, então eles resolveram lutar. Isso pode algo justificar os atos deles?

O MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, é um movimento brasileiro que busca a reforma agrária, a redistribuição de terras para todos de modo justo. Bem sabemos que grande parte da terra está na mão de poucos oligarcas, que muitas vezes nem fazem uso da propriedade, mas não querem abrir mão de suas posses para a população que quer produzir. Agora, mesmo considerando a causa justa — como eu a considero —, é preciso analisar alguns modos mais extremos que o movimento usa para militar pela causa: invasão de propriedade e bloqueio de rodovias, por exemplo. À luz da Constituição, essas são infrações da Lei, e infrações devem ser punidas. Não me parece ser a mesma resolução se analisada pela luz do justo e ético.

Outro caso que se mostra muito revelador é a luta contra a Ditadura Militar no Brasil. Assim como nos outros dois exemplos, existia um ideal e as pessoas lutaram por ele contrariando a Lei. Em verdade, esse é o caso que mostra a confusão aqui, pois os militantes da época são considerados heróis hoje em dia e muitos de nossos políticos estavam entre eles, burlando a lei. José Dirceu participou do seqüestro de um embaixador americano(¹); Dilma Roussef era guerrilheira e afirma ter sido torturada(²); a lista de presos ou exilados contém inúmeras personalidades do País(³).

Quer dizer, por que nesse caso as pessoas são louvadas, enquanto FARC e MST são difamados constantemente na mídia? Se não são as leis, se não são os ideais, o que diferencia de verdade esses casos? E não digo só em termos da mídia, que acompanha o poder e também difamava quem lutava contra a Ditadura na época, mas em termos absolutos: como podemos discernir quem está certo nessas questões? O que é um parâmetro confiável? Será que nada feito por humanos merece tanta confiança? E se assim for, que devemos fazer: ignorar injustiças e sermos fiéis às leis vigentes, para não haver confusão ou ignorar as próprias leis e só nos basearmos nos ideais próprios?

3 de maio de 2008

Carta à criação

Aos incríveis seres que transformam estes sinais em pensamentos, exponho meus motivos:

De começo, fiz rodar no infinito o círculo perfeito em que as coisas aconteceriam, que vocês deram o nome pouco didático de tempo-espaço, expandido por matéria. Saibam: todos vocês entendem o que havia antes de, assim, surgir “tudo o que há”. É para o Universo assim como foi para cada um de vocês a eternidade que se passou antes de nascerem — nihil, nada. Como disse Stephen Hawking, que vocês devem conhecer, “perguntar o que veio antes do Big Bang é como perguntar o que existe ao sul do Pólo Sul”.

Com alguns cuidados básicos em fazer cargas, matéria que podia se unir de inúmeras formas possíveis e algumas forças além, tudo isso acabou dando certo. É evidente, porém, que não pensei em tudo isso na primeira tentativa. Foi um trabalho consideravelmente cansativo, com tentativas e pequenos acertos, algo como uma seleção natural de realidades — Universos — para enfim encontrar um resultado interessante. Entendam também que eu não tinha uma meta específica; isso seria fácil, eu posso criar qualquer coisa que imaginar — inclusive este é meu único “super-poder”. Não; fazer o que vocês são foi um projeto aleatório, e por isso mesmo desafiador. Sendo a única força exterior e podendo criar a bel-prazer, a única coisa que eu não conseguia era ver o acaso tirar de mim o peso da decisão. Saliento aqui que isso é apenas uma figura de linguagem para me entenderem; nada tenho com as sensações de vocês, que são apenas táticas evolutivas.

Assim, o tempo avançou: matéria se aglutinou, diferentes junções de cargas se espalharam por todo o espaço e, em seu planeta, começaram a se duplicar. O primeiro grande alerta que tive de meu sucesso foi o dia que sua espécie percebeu todo o processo que dera à luz vocês. É certo, existiram vários pensadores antes, mas suas conquistas eram subjetivas, pequenos fragmentos de verdade. A partir do momento em que compreenderam sua origem, vocês estavam aptos a compreender toda a vida. Era uma questão de tempo. Sobre a chamada seleção natural, é importante mencionar que nada tive com isso. Paradoxais criaturas vocês são; conseguem ver muito com tão pouco, mas não conseguem compreender metade do que vêem. Se dois seres lutam por recursos, um vence e assim faz mais réplicas de si, isso não é uma lei da natureza. Não é um capricho meu. Simplesmente é o que haveria de acontecer, não há segredo nisso. Como poderia a seleção natural não existir? É pura lógica, quem reproduz com mais aptidão vence. Equiparar isso com uma lei como a gravidade é quase um insulto.

Muito foi dito aí sobre mim. Desde o seu crescimento, sempre se especulou sobre meus afazeres e o que era mérito meu. Ora, nada aí dentro é meu. Toda a dança cósmica, qualquer evento que ocorreu ou ocorrerá é simplesmente baseado na natureza e nos seus efeitos quase aleatórios. A minha única participação é indireta, que foi dar início a tal. Dentre todos que falaram sobre a minha pessoa, ninguém sabia! Fui relegado simplesmente a respostas às melhores perguntas, a função de meu nome equivalia a “não sei”. Desnecessário então dizer que não se soube de mim nunca, e nem poderia ser sabido. O que seriam as orações e a fé, senão boas táticas para manter o equilíbrio mental?

Quanto à moral, nada tenho a dizer. Interessa-me muito ver do que vocês são capazes, prefiro seus loucos desvarios à pacata paz. Questões de bondade não me competem, todo o esforço por empatia e solidariedade que vejo em vocês depende só de sua própria vontade, se vocês as julgam tão importantes. Quem sabe provada minha não-interferência, vocês tenham mais sorte nessa busca, visto que as invocações de meu nome de nada serviram nesses longos anos.

Se nada que me interessa está fora do meu alcance, e já criei a aleatoriedade com vocês, seres que dominaram os fatos e agora comandam seu mundo, nada me resta a fazer. Tendo consciência do nada existente de fora, só cumpri meu único desejo em vocês, e agora tudo acaba. Deixarei de existir, e embora isso não faça diferença para vocês, os avisei. Todos os seus poetas sentiriam muito pressentindo eternamente que havia algo e eles nunca o souberam. A eternidade agora é de vocês, que são biólogos e podem entender a si mesmos. O passado foi meu, que fui apenas um físico ao criá-los e nada sei sobre a vida em si.



Do famigerado Deus.