3 de maio de 2008

Carta à criação

Aos incríveis seres que transformam estes sinais em pensamentos, exponho meus motivos:

De começo, fiz rodar no infinito o círculo perfeito em que as coisas aconteceriam, que vocês deram o nome pouco didático de tempo-espaço, expandido por matéria. Saibam: todos vocês entendem o que havia antes de, assim, surgir “tudo o que há”. É para o Universo assim como foi para cada um de vocês a eternidade que se passou antes de nascerem — nihil, nada. Como disse Stephen Hawking, que vocês devem conhecer, “perguntar o que veio antes do Big Bang é como perguntar o que existe ao sul do Pólo Sul”.

Com alguns cuidados básicos em fazer cargas, matéria que podia se unir de inúmeras formas possíveis e algumas forças além, tudo isso acabou dando certo. É evidente, porém, que não pensei em tudo isso na primeira tentativa. Foi um trabalho consideravelmente cansativo, com tentativas e pequenos acertos, algo como uma seleção natural de realidades — Universos — para enfim encontrar um resultado interessante. Entendam também que eu não tinha uma meta específica; isso seria fácil, eu posso criar qualquer coisa que imaginar — inclusive este é meu único “super-poder”. Não; fazer o que vocês são foi um projeto aleatório, e por isso mesmo desafiador. Sendo a única força exterior e podendo criar a bel-prazer, a única coisa que eu não conseguia era ver o acaso tirar de mim o peso da decisão. Saliento aqui que isso é apenas uma figura de linguagem para me entenderem; nada tenho com as sensações de vocês, que são apenas táticas evolutivas.

Assim, o tempo avançou: matéria se aglutinou, diferentes junções de cargas se espalharam por todo o espaço e, em seu planeta, começaram a se duplicar. O primeiro grande alerta que tive de meu sucesso foi o dia que sua espécie percebeu todo o processo que dera à luz vocês. É certo, existiram vários pensadores antes, mas suas conquistas eram subjetivas, pequenos fragmentos de verdade. A partir do momento em que compreenderam sua origem, vocês estavam aptos a compreender toda a vida. Era uma questão de tempo. Sobre a chamada seleção natural, é importante mencionar que nada tive com isso. Paradoxais criaturas vocês são; conseguem ver muito com tão pouco, mas não conseguem compreender metade do que vêem. Se dois seres lutam por recursos, um vence e assim faz mais réplicas de si, isso não é uma lei da natureza. Não é um capricho meu. Simplesmente é o que haveria de acontecer, não há segredo nisso. Como poderia a seleção natural não existir? É pura lógica, quem reproduz com mais aptidão vence. Equiparar isso com uma lei como a gravidade é quase um insulto.

Muito foi dito aí sobre mim. Desde o seu crescimento, sempre se especulou sobre meus afazeres e o que era mérito meu. Ora, nada aí dentro é meu. Toda a dança cósmica, qualquer evento que ocorreu ou ocorrerá é simplesmente baseado na natureza e nos seus efeitos quase aleatórios. A minha única participação é indireta, que foi dar início a tal. Dentre todos que falaram sobre a minha pessoa, ninguém sabia! Fui relegado simplesmente a respostas às melhores perguntas, a função de meu nome equivalia a “não sei”. Desnecessário então dizer que não se soube de mim nunca, e nem poderia ser sabido. O que seriam as orações e a fé, senão boas táticas para manter o equilíbrio mental?

Quanto à moral, nada tenho a dizer. Interessa-me muito ver do que vocês são capazes, prefiro seus loucos desvarios à pacata paz. Questões de bondade não me competem, todo o esforço por empatia e solidariedade que vejo em vocês depende só de sua própria vontade, se vocês as julgam tão importantes. Quem sabe provada minha não-interferência, vocês tenham mais sorte nessa busca, visto que as invocações de meu nome de nada serviram nesses longos anos.

Se nada que me interessa está fora do meu alcance, e já criei a aleatoriedade com vocês, seres que dominaram os fatos e agora comandam seu mundo, nada me resta a fazer. Tendo consciência do nada existente de fora, só cumpri meu único desejo em vocês, e agora tudo acaba. Deixarei de existir, e embora isso não faça diferença para vocês, os avisei. Todos os seus poetas sentiriam muito pressentindo eternamente que havia algo e eles nunca o souberam. A eternidade agora é de vocês, que são biólogos e podem entender a si mesmos. O passado foi meu, que fui apenas um físico ao criá-los e nada sei sobre a vida em si.



Do famigerado Deus.

12 comentários:

Unknown disse...

uau

Anônimo disse...

Já faz algum tempo que quero te recomendar um livro, João Gabriel. Acho que o Felipe também vai gostar, mas sempre achei a sua cara. O livro é o "1984", do George Orwell, é muito bom, um dos meus preferidos. espero que você goste. até mais ver ;)

p.s: gostei muito da carta.

João Gabriel disse...

Uma boa observação, eu diria. Já li 1984, na verdade, é muito bom mesmo :)
O Felipe, não sei se leu..

Obrigado

Feppas disse...

Não li, mas é o do big brother, né?

que que tem a ver com Deus?

João Gabriel disse...

Esse mesmo, "viva o Grande Irmão!".
Mas eu até prefiro admirável mundo novo, com que ele geralmente é comparado... talvez porque eu tenha lido antes.

Anônimo disse...

Tudo isso para nada. Concluo através da carta, que somos "um canal de tv para Deus"; um entreterimento criada ao acaso como "um trocar de canal".

Aceitando a existência de Deus, deve ser triste saber que o descobrimento do próprio ante à criação é uma mera pergunta sem resposta.

Parabéns pela Carta.

João Gabriel disse...

Analisando por esse lado, aqueles que acreditam em um Deus que criou tudo e não interage são os mais imcompreensíveis. Seria um Deus inútil para eles, que não faz mais nada? Os que acreditam no poder das rezas — ainda que eu ache ridículo — eu entendo, tem toda a questão de "ele salvou (ou vai salvar) minha vida". Mas se você percebe que não temos provas de um Deus atuante, por que acreditar que existiu um no começo e agora ele está lá ocioso?

Anônimo disse...

Ainda que você acha ridículo rezar, não esqueça do efeito placebo, pensando como um ateu.

Acredite porque é absurdo :]

João Gabriel disse...

Sim, realmente. Eu acho que existem vários benefícios de ter uma crença em um ser superior. Tem gente que especula que essas crenças surgiram porque davam vantagens evolutivas... quer dizer, não dá de negar o placebo mesmo. Mas eu não posso simplesmente me fazer acreditar! E nem que pudesse o faria...

Feppas disse...

As pessoas só acreditam nas coisas porque elas são absurdas. Ninguém 'acredita' na gravidade, por que ela simplesmente está lá, pule e ela será provada, mas Deus é improvável (hãn, hãn) então só acreditando mesmo.

Quanto às vantagens evolutivas, acho que elas seriam meio óbvias, pois ao ter alguém para passar um momento difícil com você ou alguem a quem culpar por uma desgraça alivia a carga emocional das pessoas ;D

João Gabriel disse...

Não, as pessoas também acreditam nas coisas bem prováveis que não aconteceram ainda. Eu acredito que vá chover esse mês e não é absurdo.

Feppas disse...

Mas é por que chove todo mês, já que o Brasil é um país tropical

Se você morasse na Espanha e acreditasse que ia chover no verão, aí seria absurdo.