4 de fevereiro de 2010

FSM10: um outro mundo é possível

De 25 a 29 de janeiro de 2010, estive no Fórum Social Mundial, que aconteceu em Porto Alegre e nas cidades vizinhas. Para quem não sabe, o FSM é um dos maiores eventos da esquerda do mundo, senão o maior. Ele surgiu em 2001 com o tema "um outro mundo é possível", que na época falava diretamente da luta dos movimentos populares e de esquerda para criar uma alternativa à política neoliberal, que era predominante em todo o mundo. Todo ano o Fórum reúne movimentos sociais, ONGs, partidos políticos, sindicatos, jornalistas, estudantes, intelectuais e sonhadores; no ano passado houve um grande evento unificado, na Amazônia, e este ano haverá eventos espalhados por diversos lugares do mundo - o de Porto Alegre foi apenas um deles.

O Fórum, que já chegou a reunir 200 mil pessoas de mais de 100 nacionalidades nas edições unificadas, contou com cerca de 30 mil pessoas na grande Porto Alegre. Marcando os seus 10 anos, ele voltou à cidade onde se originou e buscou analisar o que se conquistou e para onde ele caminha agora, que objetivos deve ter e que estratégias tomar. Dentre os presentes esse ano, podemos citar o presidente Lula, as (pré) candidatas Dilma Roussef e Marina Silva, o ministro Tarso Genro, João Pedro Stédile, do MST e o sociólogo Boaventura de Souza Santos, entre tantos outros. Porém, seria muito míope caracterizar o Fórum por seus palestrantes: a relevância do evento é a reunião de milhares de pessoas comprometidas com a mudança social; centenas de organizações compartilhando informação sobre suas lutas, suas dificuldades e suas conquistas; centenas de atividades alternativas e abertas, programadas pelos próprios participantes; enfim, a multiplicidade de ideias e experiências é que faz a força do FSM e o tornou tão bem-sucedido.

Algumas coisas me chamaram bastante a atenção:

Acampamento Intercontinental da Juventude (AIJ)

Já é uma tradição do Fórum o Acampamento Intercontinental da Juventude: um local barato para ficar durante a semana do evento e uma experiência muito interessante em si mesma. Mais que apenas um camping, no AIJ acontecem oficinas, debates, palestras e shows (inclusive, foram mais de 100 shows no FSM, incluindo O teatro mágico, Os mutantes, Nação Zumbi e Marcelo D2). Dividido em campos temáticos, como o Espaço de Saúde Mercedes Sosa, a cidade do Hip-Hop e a Aldeia da Paz, cada qual com suas atividades específicas, o AIJ reproduz o espírito do FSM: um espaço aberto e livre, de organização democrática e horizontal.

Mas um grande problema merece nota: o AIJ ficava incrivelmente longe dos eventos, especialmente de Porto Alegre (demorava cerca de 2 horas para ir até a cidade, pegando um ônibus e um trem). Assim, os acampados (na maioria jovens) ficaram isolados de muitos eventos. O primeiro ônibus saía do acampamento por volta das 8 horas e levava até a estação de trem, por meio do qual se ia para Porto Alegre. Chegava-se na cidade por volta das 10 horas, enquanto as principais mesas de palestras começavam às 9 horas da manhã!

Muitas bandeiras, diversas lutas

Quando o Fórum surgiu, ele tinha um alvo principal: a política econômica do neoliberalismo. De fato, historicamente a esquerda luta contra um inimigo apenas, o capitalismo, o considerando a fonte dos males e problemas da sociedade. Felizmente, essa abordagem evoluiu para uma mais completa, que enxerga outros problemas da sociedade que ultrapassam a desigualdade econômica gerada pelo capitalismo, e o FSM hoje é o encontro de uma infinidade de bandeiras positivas. No primeiro dia do encontro, houve uma grande marcha unificada com todos os movimentos, os partidos, os sindicatos e as ONGs. Uma profusão de lutas importantes. Além de críticos do capitalismo, havia apoiadores dos direitos humanos, defensores da igualdade racial, da igualdade entre os sexos, dos direitos dos quilombolas, dos direitos dos indígenas, da laicidade do Estado e do respeito entre as religiões, do movimento LGBT, da natureza, da liberação animal, da reforma agrária, da reforma urbana, da legalização das drogas leves, das práticas de Economia Solidária e ainda outros. Todos por suas causas e pela causa global contra a opressão, a desigualdade e por um mundo melhor.

Socialismo do século XXI ou Esquerda de Vanguarda?

Como sabemos, houve aqui na América Latina nos últimos anos um fortalecimento da esquerda, através da eleição de diversos grupos políticos progressistas. Alguns desses, como o de Hugo Chavez e de Evo Morales, dizem estar caminhando para o "socialismo do século XXI". Esse novo socialismo se propõe a renovar as centenárias ideias de Marx e outros teóricos e, principalmente, evitar os erros cometidos pelos países que buscaram o socialismo durante o século XX - a burocratização, o autoritarismo, a perseguição, o genocídio, o desrespeito a grupos minoritários, o descaso com a natureza, etc. Certamente é do direito desses governos buscarem a sociedade que quiserem e a nomearem como quiserem, se os seus povos os apoiarem. Porém, o que notei em alguns palestrantes do Fórum, como no sociólogo português Boaventura, foi uma tentativa de aglutinar todas as bandeiras ali levantadas e juntá-las no conceito "socialismo do século XXI", o que é uma desonestidade com seus proponentes - nem só de socialismo vive a esquerda; havia no fórum social-democratas, anarquistas, pessoas alinhadas a outras ideologias e pessoas não alinhadas a nenhuma. A esquerda moderna deve apoiar as diversas lutas encontradas no Fórum, pois são questões importantes na busca por uma sociedade mais justa, igualitária, livre e fraterna, mas não precisa adotar o nome de socialismo - e talvez nem deva! A maior parte da sociedade tem uma opinião negativa do que é o socialismo, em parte por toda a propaganda contrária a esse sistema, mas principalmente por todo o mal que já se fez em seu nome. Não devemos correr o risco de ter ideias tão boas, como as encontradas nos movimentos do FSM, manchadas por tal associação. Socialismo do século XXI pretende não cometer os erros do passado e inovar? Pois inove-se também seu nome, e assim o caminho está livre para criar um outro mundo possível.

O que o FSM deve ser

Muito se discutiu, em especial nas mesas de abertura e encerramento, sobre que rumos os próximos Fóruns devem tomar. Por um lado, alguns argumentam que o FSM deveria buscar uma unidade em torno de algumas questões para se posicionar institucionalmente e poder ter uma influência maior nos rumos da sociedade, já que ele é a maior reunião de diferentes setores da esquerda. Nesse ponto de vista, o Fórum tem se tornado um fim em si mesmo, uma semana em que há muitos debates e ideias, mas que acaba sem uma conclusão e por isso não ajuda a construção de "um outro mundo possível" tanto quando poderia. Por outro lado, argumentaram muitos, a força e a importância do FSM é a sua própria multiplicidade, que seria ameaçada na busca de um consenso; algumas opiniões poderiam ser deixadas de lado e ele se tornaria uma instituição burocratizada e pouco atrante para alguns setores - o que não é difícil de imaginar, quando se tem em mente que lá se encontra desde anarquistas a partidos que não buscam nenhuma revolução, apenas reformas na sociedade. Assim, é essencial manter a pluralidade de ideias e práticas dentro do Fórum. O FSM pensa outros mundos possíveis; a luta política por outro determinado mundo é necessária, mas se dá em outros locais, específicos para tal feitio.

Lula no FSM10

Um dos eventos do FSM se chamava "Diálogos com o presidente Lula", no qual supostamente o presidente faria um discurso e responderia questões dos movimentos sociais. Era pra começar às 18h, mas Lula só chegou 20h30. E o mais surpreendente é que as sete mil pessoas que lotaram o estádio Gigantinho, de Porto Alegre, esperaram todo esse tempo cantando músicas que saudavam o político: "olê / olê olê olá / Lula / Lula!" e "Lula, / guerreiro / do povo brasileiro!". A plateia não era uma amostra balanceada das pessoas do Fórum, que tem muita gente criticando o governo Lula, mas estava repleta de membros dos partidos da base aliada do governo e dos sindicatos, o que explica tamanha popularidade. Ao apresentar o presidente, o representante da organização do FSM aproveitou para fazer 3 perguntas provocativas a respeito da COP15, da situação no Haiti e do PNDH-3, porém Lula não as respondeu diretamente, embora tenha tocado nos três assuntos. A fala do presidente foi muito alinhada às opiniões mais expressas no FSM: defesa de minorias, exaltação dos programas sociais, crítica ao sistema neoliberal, aos órgãos financeiros mundiais e ao Fórum Econômico Mundial de Davos. Também Lula falou muito de solidariedade ao Haiti, fazendo uma defesa do papel das tropas brasileiras que ocupam o país em Missão de Paz da ONU (Minustah). Apesar disso, dois pontos foram negativos em sua fala: primeiro o presidente defendeu o auxílio da Embrapa à plantação na savana africana, para que os países africanos possam se tornar exportadores - o que significa desmatamento da savana para o plantio de monoculturas, que danificam o solo e geram renda para os grandes donos de terra; segundo, Lula se orgulhou de não ter rompido com o FMI, ter pagado as dívidas brasileiras com o órgão e agora estar emprestando dinheiro para ele - o que significa que países mais pobres que o Brasil agora estarão emprestando dinheiro nosso com juros altos; passamos de explorados a exploradores. Diante dessas gafes, do atraso absurdo, da inexistência do diálogo que o nome do evento sugeriu e da esquiva às perguntas feitas pelo representante do FSM, chegou a ser assustador ver a festa que a plateia fez para o presidente, o tratando como um popstar e não com o ceticismo e criticidade com que os políticos devem ser julgados.


Alguns sites bons para ler mais sobre o Fórum:
site do FSM10, site do AIJ, cobertura Caros Amigos

2 comentários:

João Gabriel disse...

Outro site com muita informação sobre o FSM: http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/forum-social-mundial-2010/.

Mari Brito disse...

ah, teu resumo do FSM tá muito bom. eu li tudo e, honestamente, adorei *-*